Empresas & Indústrias

Por que não extinguir as sociedades simples?

A quem serve, afinal, limitar a liberdade associativa das pessoas?

Em 8 de julho de 2021, o professor Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França escreveu uma nota com fortes críticas ao Projeto de Lei nº 15/21 (PL 15/2021) de conversão da Medida Provisória nº 1.040/21 (MP 1040/2021). Em sequência, o professor Mário Luiz Delgado também escreveu um pequeno artigo defendendo a existência das sociedades simples e apontando o que chamou de “graves equívocos no projeto de conversão da MP 1.040/21”.

As críticas apontadas pelos eminentes professores podem ser resumidas da seguinte maneira: (i) as atividades empresariais e as atividades intelectuais são suficientemente distintas de maneira a justificar terem tratamento distintos pelo direito societário; (ii) a eliminação das sociedades simples importará em graves problemas tributários; e (iii) o PL 15/2021 não deu o tratamento adequado às sociedades de advogado que, por força dos arts. 15 e 16 do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOAB) devem ser constituídas sob a forma de sociedades simples puras, sendo vedada a adoção de qualquer elemento empresarial.

Considerando que as duas últimas críticas podem (e provavelmente serão) ser resolvidas mediante a adequação da legislação tributária eventualmente afetada e pela alteração do EOAB, no que for pertinente para adequá-lo à nova realidade societária (caso confirmada pelo Senado Federal), vamos centralizar nossa discussão apenas ao primeiro ponto.

Dito isso, vejamos quais são os principais argumentos de ambos os juristas em defesa da manutenção da dicotomia do direito societário. O professor Erasmo Valladão defende que existe uma “valoração social” entre as atividades empresariais desenvolvidas por empresários e as atividades intelectuais desenvolvidas por profissionais liberais que imporiam imperativos jurídicos e éticos aos últimos inoponíveis aos primeiros. O professor justifica essa impressão em razão da exigência de formação superior aos profissionais liberais, da existência de “regras de decoro” que restringem a livre concorrência (que seria da “essência da atividade empresarial”) e da aparente dificuldade em massificar a atividade dos profissionais liberais.

Por sua vez, o professor Mário Delgado complementa esses pontos lembrando que o desempenho de profissão é “prerrogativa exclusiva do ser humano, enquanto humano”, sendo certo que a sociedade existe em razão da atuação personalíssima de seus sócios e apenas, e tão-somente, para facilitar a organização desses esforços personalíssimos que, por sua vez, é suplantado pela “organização dos fatores de produção” nas sociedades empresárias.

Com todas as vênias aos eminentes juristas que influenciaram (e continuam influenciando) sobremaneira a disciplina societária, esses argumentos não parecem mais se sustentar diante da realidade econômica hodierna. Antes de tudo, considerando que o nosso ordenamento jurídico atual (veementemente defendido por ambos os professores) teve o mérito de positivar a definição de atividade empresarial e de excepcioná-la para as hipóteses em que se entendeu necessárias, cremos que a discussão deve se iniciar do próprio art. 966 do Código Civil (CC), abaixo transcrito para facilitar a discussão:

“Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”.

É da literalidade do referido dispositivo que se extrai a definição de empresa: o exercício profissional de atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, excepcionadas aquelas atividades decorrentes de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística (ainda que com o concurso de colaboradores), salvo se essas atividades constituírem um mero elemento de uma empresa.

Observe-se que o próprio legislador sentiu a necessidade de expressamente excepcionar as atividades dos profissionais liberais da definição legal de empresa. E o fez, podemos teorizar, porquanto se não o tivesse feito, essas atividades se enquadrariam perfeitamente ao conceito. Verifiquemos esta hipótese.

Um médico exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada para a circulação de serviços? Sim. Um advogado? Também. Um contador? Idem. Todos esses profissionais liberais exercem uma atividade econômica mais ou menos organizada para a circulação de seus serviços. Todos esses profissionais são criadores de riquezas. Entretanto, por que essa atividade não é considerada empresa? Porque está excluída pelo parágrafo único do art. 966 do CC.

Por sua vez, o parágrafo único do art. 966 do CC também traz a “exceção da exceção”, qual seja, a de que se a atividade do profissional liberal constituir um mero “elemento de empresa”, então a atividade passará a ser considerada empresarial. A interpretação mais comumente disseminada entre nós desse obscuro dispositivo legal é consoante ao argumento do professor Mário Delgado para diferenciar as atividades empresariais e não-empresariais, a saber, quando a pessoa do profissional liberal passa a ser menos importante do que a própria organização dos fatores de produção à qual o referido profissional está submetido, então dir-se-á que a sua atividade profissional passou a ser um mero elemento de empresa.

Fundamentalmente, portanto, são dois os critérios a serem investigados para classificação de uma atividade como não-empresarial: (i) possuir natureza científica, literária ou artística; e (ii) a pessoa natural do profissional liberal ser mais importante do que a organização do exercício de sua profissão. Traçando-se um paralelo com os exemplos trazidos pelos próprios professores, uma sociedade de médicos cardiologistas, ainda que possua empregados e outros médicos e profissionais da saúde sob seu emprego, que atraia seus pacientes em razão da atuação dos sócios não exerce empresa. Por sua vez, se essa sociedade evoluir para se tornar um hospital (tudo o mais constante, inclusive o atendimento de pacientes pelos sócios), ela poderá ser considerada empresarial, pois a organização dos fatores de produção passará a ser mais importante do que a atuação individual do médico.

Essa distinção, conquanto razoavelmente adequada para o âmbito acadêmico, se torna problemática quando passa a ser essencial para aspectos mais práticos, como, por exemplo, o enquadramento da sociedade em um ou outro regime tributário, bem como para permitir o acesso ao regime de insolvência civil ou empresarial. Qual o grau de “organização” acima do qual a sociedade será enquadrada no regime empresarial e abaixo do qual deverá se submeter ao regime civil? São perguntas que, conquanto necessárias para se dar o mínimo de segurança jurídica ao interessado, não têm uma resposta clara. E o problema se agrava quando se observa que a separação é absolutamente artificial, como se passa a demonstrar analisando cada um dos argumentos dos eminentes juristas supramencionados.

Começando com o primeiro argumento, qual seja, a de que os profissionais liberais normalmente necessitam de uma formação superior para o seu exercício, enquanto a mesma exigência não é feita aos empresários. Esse argumento é inverídico tanto de um lado, quanto do outro. Veja-se, por exemplo, que não se exige qualquer tipo de formação superior para que artistas como músicos, pintores e autores exerçam a sua profissão e, também, para eles não há motivos para a distinção. Por outro lado, há nichos empresariais que apenas aqueles que possuem não apenas uma formação superior, mas, também, uma pós-graduação ou mesmo um mestrado profissional conseguem alcançar. Observa-se, portanto, que a exigência ou não de nível superior para o ingresso em qualquer atividade não decorre de sua “natureza” empresarial ou intelectual, mas de exigência legal (para aquelas profissões regulamentadas nesse sentido) ou de seleção do próprio mercado.

Já as “regras de decoro” que seriam típicas das profissões liberais e antitéticas à livre concorrência (essencial à atividade empresarial) também não são um critério razoável para a dissociação pretendida. De um lado, observa-se que é muito comum que os empresários se organizem em associações ou sindicatos com códigos de ética próprios e que lhes impõem regras de decoro profissional (e.g. Código de Ética do Conselho Federal dos Corretores de Imóveis, Código de Ética da Câmara Americana de Comércio para o Brasil). De outro lado, observa-se que nem mesmo a Ordem dos Advogados do Brasil (“OAB”) ousou mitigar a possibilidade de os advogados concorrerem entre si, criando apenas regras que limitam como proceder com o marketing de seus próprios serviços. Nem mesmo o argumento utilizado pelo professor Erasmo Valladão de que “nunca se viu um escritório de advocacia, aliás, fazer propagando no rádio, na televisão e nos meios de comunicação em geral” é suficiente, dado que em outros países, como os Estados Unidos por exemplo, esse tipo de propaganda é extremamente comum e só não o é no Brasil porque a própria OAB veda a sua prática. Novamente, trata-se de uma escolha política que não decorre da “natureza jurídica” da atividade.

Já com relação à “dificuldade” de massificar a atividade dos profissionais liberais, o próprio jurista reconhece que esse argumento já não se sustenta. Sem precisar ir muito além sobre esse assunto, basta que se observe as realidades das grandes bancas de advocacia, das auditorias membro do seleto grupo conhecido como “big four” e das grandes organizações médico-hospitalares para se verificar que, de há muito, é possível tornar impessoal, padronizada e sequencial quase toda atividade humana.

Com relação à alegação de que o desempenho de profissão seria “prerrogativa exclusiva do ser humano, enquanto humano”, verifica-se que ela traz uma petição de princípio, qual seja, a de que a atividade empresarial não o seria. Como sabemos, as pessoas jurídicas (empresariais ou não) não existem no mundo real.

Seja ela qual for, ela depende de seres humanos (enquanto humanos) para desenvolver e executar o seu objeto social, qualquer que seja ele. Desse modo, o desempenho de empresa também é uma prerrogativa exclusiva do ser humano, enquanto humano, pelo menos no estágio atual de desenvolvimento da chamada inteligência artificial que, por sua vez, também poderia ingressar no exercício das profissões liberais.

Corroborando os argumentos apresentados, é certo que o direito empresarial encontra sua justificação não na tutela do comerciante, mas na tutela do crédito e da circulação de bens ou serviços, vale dizer, não são protegidos os agentes que exercem atividades econômicas empresariais, mas o conjunto das suas relações. Não há como negar que, mesmo nas profissões intelectuais, existe um processo de circulação de riquezas, cuja organização exige um mesmo regime jurídico.

Toda sociedade exerce uma atividade econômica e, por isso, cria riqueza e exerce suas atividades voltadas ao mercado. A separação entre sociedades simples e empresárias é uma separação, atualmente, artificial, representando uma opção legislativa. Como tal, essa opção pode mudar e seguir um caminho já vem sendo seguido no direito concorrencial, na União Europeia, que considera a ideia de qualquer atividade econômica.

Desse modo, queremos concluir que, conquanto concordemos com algumas das diversas críticas que vêm sendo feitas ao projeto de conversão nos trechos em que tratou de direito societário, sobretudo pela ausência de maior debate na comunidade acadêmica sobre o assunto, bem como sobre a constitucionalidade da iniciativa, isso não significa dizer que discordamos da intenção do legislador em revisar esses institutos.

Devemos tomar o devido cuidado em observar se as críticas endereçadas ao PL 15/21 discorrem sobre defeitos efetivos do projeto de lei ou se estamos nos deixando levar por uma fetichização de institutos que foram importantes em determinado estágio de desenvolvimento da nossa sociedade, mas que precisam ser atualizados para nossa nova realidade.

Concluindo este texto com a mesma ideia provocativa que tanto o professor Erasmo Valladão, como o professor Mário Delgado fizeram ao final de seus respectivos textos, parece, sim, que o legislador está cada vez mais atendo à liberdade de iniciativa de seus jurisdicionados. Entretanto, ao contrário do que ambos os autores parecem fazer crer com seus respectivos textos, o sistema atual está repleto de normas de ordem pública que, aparentemente influenciadas pelo mesmo apego a ideias que não parecem mais adequadas à realidade econômica atual, restringem sobremaneira a forma com que as pessoas, empresárias ou não, podem se organizar em sociedade.

Uma solução intermediária, portanto, não seria preocupar-se com a extinção ou a manutenção de tipos societários que podem ou não serem utilizados por empresários ou profissionais liberais, mas, sim, em dar mais liberdade de escolha para que o jurisdicionado possa regular as normas internas de sua própria sociedade de acordo com a realidade de suas atividades. A quem serve, afinal, limitar a liberdade associativa das pessoas?

Fonte: Jota

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