Segundo dados do Justiça em Números, publicada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2021 foram protocoladas no Brasil 15.784 novas ações envolvendo erro médico. A título comparativo, em 2015 foram 10.557 novas ações [1].
O levantamento do CNJ indica uma tendência de crescimento da judicialização da relação médico-paciente e dos serviços de saúde prestados por clínicas e hospitais, situação que deve se agravar neste ano, especialmente com a retomada ou o aumento das cirurgias eletivas pós-pandemia. Nesse contexto, é importante compreender como a jurisprudência estabelece critérios para a responsabilização civil em caso de suposto erro médico.
Quanto ao médico e aos demais profissionais da saúde, o Código de Defesa do Consumidor estabelece que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (artigo 14, §4º). Portanto, salvo em situações específicas, os tribunais decidem que a responsabilização civil da pessoa física é de natureza subjetiva. Ilustrativamente, em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou o seu entendimento de que “a responsabilidade do médico é subjetiva e fica configurada desde que demonstrada a sua culpa, nos termos do §4º do artigo 14 do CDC, considerando especialmente que, em regra, a atividade médica é obrigação de meio, na qual o profissional de saúde não tem condições de assegurar o melhor resultado, isto é, a própria cura” [2].
O cenário torna-se mais complexo quando se trata da responsabilidade civil das clínicas e dos hospitais, não havendo uniformidade de entendimento quanto ao tema.
Para parte da doutrina, a previsão do artigo 14, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor beneficia exclusivamente o profissional da saúde. Segundo essa interpretação, às clínicas e aos hospitais não se aplica o regime da culpa. A responsabilidade civil das referidas entidades seria objetiva, fundada no conceito de defeito do serviço, previsto no caput do artigo 14 da Lei nº 8.078/1990, o qual determina que “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.
A tese se alicerça no seguinte raciocínio: considerando que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos serviços de saúde prestados pelas clínicas e hospitais e que o regime da responsabilidade civil por defeito do artigo 14 é independente de culpa, deve-se interpretar restritivamente a exceção prevista no §4º deste dispositivo, que nomina exclusivamente os profissionais liberais.
Seguindo essa orientação, no julgamento do Recurso Especial nº 1.316.628, o Superior Tribunal de Justiça asseverou que “a exceção prevista no parágrafo 4º do artigo 14 do CDC, imputando-lhes responsabilidade subjetiva, é restrita aos profissionais liberais” [3]. De forma semelhante, no acórdão que analisou o Recurso Especial nº 1.184.128, a corte entendeu que “a responsabilidade do hospital é objetiva quanto à atividade de seu profissional plantonista (CDC, artigo 14), de modo que dispensada demonstração da culpa do hospital relativamente a atos lesivos decorrentes de culpa de médico integrante de seu corpo clínico no atendimento” [4].
Entretanto, em sentido diverso, já se decidiu que a responsabilidade civil objetiva das clínicas e dos hospitais “circunscreve-se apenas aos serviços única e exclusivamente relacionados com o estabelecimento empresarial propriamente dito, ou seja, aqueles que digam respeito à estadia do paciente (internação), instalações, equipamentos, serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia) etc. e não aos serviços técnicos-profissionais dos médicos que ali atuam, permanecendo estes na relação subjetiva de preposição (culpa)” [5].
Em um primeiro momento, o contexto jurisprudencial pode aparentar impreciso ou oscilante. Entretanto, se analisada com cuidado, a divergência acima apontada é meramente teórica. Mesmo os julgados que afirmam, sem qualquer restrição, que a responsabilidade civil das clínicas e dos hospitais não pressupõe culpa, fundando-se, pois, no conceito de defeito do serviço, somente reconhecem in concreto a configuração da falha na prestação de serviços genuinamente terapêuticos se constatado que o médico ou o profissional da saúde responsável pelo tratamento foi imperito, imprudente ou negligente. Ou seja, ao fim e ao cabo, para a responsabilização civil das clínicas e hospitais, exige-se conduta culposa do profissional da saúde vinculado à instituição.
A razão dessa convergência prática reside no próprio conceito legal de defeito do serviço. Segundo a previsão do artigo 14, §1º, do Código de Defesa do Consumidor, “o serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar”. Como o padrão de segurança legitimamente esperado não pode ser mais amplo do que aquele decorrente dos deveres de conduta impostos pela ciência médica ao esculápio, a ocorrência de um defeito na prestação dos serviços terapêuticos prestados por clínicas e hospitais pressupõe necessariamente um desvio ou um erro de conduta por parte do médico responsável pelo atendimento. Destarte, à exceção daquelas falhas ou defeitos relativos a serviços “única e exclusivamente relacionados ao estabelecimento empresarial propriamente dito” (estadia do paciente, instalações, equipamentos etc.), o conceito legal de defeito do serviço acaba por circunscrever a responsabilidade civil dos hospitais e das clínicas às hipóteses em que seus profissionais da saúde agiram culposamente.
Portanto, a divergência doutrinária e jurisprudencial quanto à natureza objetiva ou subjetiva da responsabilidade civil das clínicas e hospitais limita-se ao campo da semântica, constatação essa de fundamental importância para a defesa judicial das clínicas e dos hospitais e para a justa composição dos litígios que as envolvam. A exata compreensão da dimensão prática da jurisprudência e do real sentido e alcance do conceito de defeito do serviço viabilizam soluções equilibradas e que não desnaturam o objeto do contrato de prestação de serviços de saúde, nos quais, como regra, clínicas, hospitais e médicos assumem apenas uma obrigação de meio, não se comprometendo a garantir a cura ou o sucesso do tratamento [6].
[1] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/estatistica/. Os dados referem-se a ações ajuizadas em 1ª instância e nos juizados especiais.
[2] REsp 1698726/RJ, relator ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/06/2021, DJe 08/06/2021.
[3] REsp 1331628/DF, relator ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/09/2013, DJe 12/09/2013.
[4] REsp 1184128/MS, relator ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/06/2010, DJe 01/07/2010.
[5] REsp 258.389/SP, relator ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 16/06/2005, DJ 22/08/2005, p. 275.
[6] Para uma análise mais aprofundada da questão o artigo que publicamos em coautoria com Daniel Amaral Carnaúba na Revista de Direito do Consumidor, v. 140, mar.-abr./2022, intitulado “A aplicação do regime do defeito do serviço à responsabilidade civil das clínicas e hospitais: desmistificando a controvérsia”.
Fonte: Conjur