Direito Cível

A prescrição e a atualização do Código Civil

A prescrição é instituto voltado para proporcionar segurança jurídica às relações sociais, mas é também objeto de muitas dúvidas e debates entre os operadores do direito. Nesse sentido, a Comissão de Juristas criada pelo Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para revisão e atualização da lei 10.406/02, da qual tenho a honra de participar, tem importantes desafios, bem como uma oportunidade singular1 de aprimorar o tratamento legal da prescrição para que dela se extraia maior segurança jurídica para as relações civis2.

A ausência de um critério legal para distinguir prescrição e decadência no Código Civil de 19163 transferiu para a doutrina esta tarefa. Nesse contexto, reproduzindo o debate internacional entre as correntes alemã e ítalo-francesa, os doutrinadores brasileiros se dividiram entre aqueles que vislumbravam na prescrição uma causa de extinção da ação4 e outros que a compreendiam como uma causa de extinção do direito5.

Na década de 1960, Agnelo Amorim Filho publicou artigo criticando a distinção dessas figuras a partir de seus efeitos e propondo um critério baseado na classificação dos direitos subjetivos em direitos a uma prestação e direitos potestativos. Em sua perspectiva, os primeiros demandam a interposição de uma ação condenatória e estariam sujeitos à prescrição, ao passo que os segundos, tutelados por ações constitutivas, seriam submetidos às regras da decadência6.

Na preparação do Código Civil de 2002 foi notória a preocupação da Comissão  responsável pelo anteprojeto em distinguir estes institutos7, ao inserir na Parte Geral (arts. 205 e 206) os prazos de prescrição, e confiar os prazos de decadência à Parte Especial8. A distinção destes prazos pelo legislador teria se orientado pelo critério proposto por Agnelo Amorim Filho, segundo a doutrina9.

O legislador também fez uma importante escolha dogmática em 2002, alinhando-se à perspectiva alemã da ansprunch, ao estabelecer no art. 189 que a prescrição atua sobre a pretensão. Por pretensão, a doutrina nacional, em sua maioria, entende a ação em sentido material ou substancial10, o poder de agir ou de exigir uma prestação de outrem11.

Com efeito, essa opção do legislador chancelou a natureza jurídica da prescrição como uma exceção de direito material, tal como delineada na doutrina de Pontes de Miranda12. Todavia, muitas dúvidas ainda pairam sobre o instituto da prescrição, especialmente na identificação e aplicação adequada dos prazos às respectivas pretensões.

Do ponto de vista dogmático, a doutrina critica a redação do art. 189 do Código Civil por sugerir que: (i) toda pretensão nasce de uma violação do direito e (ii) a prescrição extingue a pretensão.

A primeira afirmativa não se sustenta, pois há várias situações nas quais a pretensão surge sem que um direito seja violado, como no advento do termo para devolução da quantia objeto de um contrato de mútuo13, nas pretensões inibitórias,  naquelas decorrentes de direitos reais14 e na recusa antecipada ao cumprimento da obrigação15.

A segunda afirmação vai de encontro à natureza jurídica da prescrição como uma exceção, que não extingue direito e nem pretensão, mas encobre a sua eficácia; ela também não coaduna com a possibilidade de renúncia da prescrição, admitida no art. 191 do Código Civil.

Outro aspecto relevante sobre a prescrição é a definição dos prazos. Sabe-se que o legislador promoveu em 2002 uma considerável redução em relação ao Código anterior, uma vez que o prazo geral passou de vinte para dez anos (art. 205), e os prazos específicos variam de um a cinco anos (art. 206). Contudo, a identificação do prazo aplicável – se especial ou geral – é um ponto sensível, especialmente para os magistrados.

O prazo prescricional da responsabilidade civil contratual é um exemplo. O Código Civil estabeleceu um prazo trienal para “a pretensão de reparação civil” (art. 206, §3º, V), porém muito se discutiu se esse prazo especial é aplicável também à reparação civil decorrente de um descumprimento contratual.

No julgamento dos REsps. 1.360.969/RS e 1.361.182/RS, destaquei que o único fundamento para continuar aplicando o prazo geral – agora decenal – às pretensões de responsabilidade civil contratual era tratar-se de um direito pessoal. Contudo, esse critério foi abandonado pelo legislador em 2002, que o substituiu pelas hipóteses específicas e pela regra subsidiária, previstas nos arts. 206 e 205, respectivamente. Na mesma ocasião, expressei minha preocupação e os malefícios de identificar a natureza da pretensão, e com isso o prazo prescricional aplicável, apenas com base na designação que o autor escolhe para sua ação.

Desde então admitindo que a expressão “reparação civil” abarca pretensões da responsabilidade contratual e extracontratual, pois nenhuma distinção foi feita pela lei, manifestei meu entendimento de que o prazo trienal é aplicavél às pretensões de reparação civil decorrentes de ato ilícito e ou de descumprimento contratual.

No julgamento do REsp. 1.281.594/SP16, a Terceira Turma adotou a tese da unificação do prazo prescricional na responsabilidade civil. Como relator, salientei que o Código Civil de 2002 abraçou a tendência de redução dos prazos prescricionais, que a tese de unificação dos prazos da responsabilidade civil melhor se adequa aos objetivos de segurança e estabilidade das relações e, ainda, que nem mesmo o Código de Defesa do Consumidor, diploma voltado para regular relações assimétricas e proteger os vulneráveis, dispôs de prazo prescricional tão extenso quanto o Código Civil.

Em 2018, ao julgar os EDREsp. 1.280.825/RJ, a Segunda Seção, por maioria, decidiu que o prazo prescricional da responsabilidade civil é decenal, pois não está abarcado na expressão “reparação civil”. O voto vencedor trouxe considerações sobre a uniformidade do prazo prescricional de todas as pretensões oriundas do descumprimento contratual, a tradição dualista do direito brasileiro em matéria de responsabilidade civil e o pragmatismo da distinção dos prazos prescricionais para hipóteses de ilícito civil e descumprimento contratual. Não obstante, mesmo a corrente vencedora admitiu as críticas à tese da distinção dos prazos prescricionais, e consignou que ela é passível de alteração legislativa.

Na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, prevaleceu, também por maioria, a tese de que a pretensão fundada na responsabilidade contratual se sujeita ao prazo decenal do art. 20517. Além dos fundamentos esposados pela Segunda Seção, o voto vencedor, do ministro Félix Fischer, destacou que a prescrição é regra restritiva de direitos e, por isso, não comporta interpretação ampliativa, e que no direito contratual, a pretensão de indenização é acessória a de execução específica, portanto, deve seguir o prazo prescricional previsto para esta.

Em que pesem os fundamentos que amparam a tese da prescrição decenal, diversas pretensões contratuais permanecem sujeitas a prazos prescricionais distintos (p. ex. nos contratos de hospedagem, fornecimento de víveres e de seguro as pretensões prescrevem em um ano, vide art. 206, §1º, I e II; nos contratos de locação de imóvel a pretensão de haver os aluguéis prescreve em três anos na forma do art. 206, §3º, I; as pretensões de juros, dividendos e demais prestações assessórias também prescrevem em três anos conforme art. 206, §3º, III; as dívidas líquidas constantes em instrumento público ou particular prescrevem em cinco anos segundo art. 206, §5º, I).

Além disso, a unificação dos prazos prescricionais das pretensões amparadas em reparação civil por ilícito contratual, enriquecimento sem causa e descumprimento contratual proporcionaria maior coerência ao sistema e segurança para as relações18. É, também, a interpretação que melhor dialoga com as leis especiais, entre elas o Código de Defesa do Consumidor.

Do mesmo modo, não há como valorar a priori se há maior gravidade no ilícito contratual ou extracontratual, pois tanto a lei como o contrato protegem interesses patrimoniais e existenciais dos indivíduos. Isso sem contar que a existência de uma prévia relação entre as partes torna mais fácil o exercício da pretensão, razão pela qual há um contrassenso em estabelecer para a pretensão de reparação de um ato ilícito um prazo inferior àquela fundada no ilícito contratual.

Ainda sobre a identificação e aplicação dos prazos prescricionais específicos, os efeitos práticos do provimento de uma ação de anulação ou nulidade não se confundem com a pretensão de declaração em si, e, portanto, não se sujeitam ao prazo decadencial. Com efeito, qual seria o prazo prescricional para exigir a reparação ou restituição cabíveis? No julgamento dos Recursos Especiais Repetitivos 1.360.969/RS19 e 1.361.182/RS20, defendi que o prazo é trienal, com fundamento no enriquecimento sem causa (art. 206, §3º, IV, do Código Civil), pois o êxito da ação de anulação suprime a causa lícita para o pagamento efetuado e caracteriza o enriquecimento indevido de quem recebeu e, por conseguinte, a pretensão daquele que pagou de reaver o seu dinheiro.

Há, ainda, a discussão sobre o início do prazo prescricional. No Brasil, a teoria da actio nata é a de maior prestígio na doutrina clássica21 e na jurisprudência22. De acordo com ela, o prazo prescricional começa a fluir quando nasce a pretensão, que pode ou não coincidir com a violação de um direito, conforme tratado anteriormente neste artigo. O importante é que, nessa vertente, a ciência da lesão pelo titular do direito é prescindível.

Todavia, há situações em que o conhecimento do titular do direito violado acerca da lesão que sofreu é colocado no centro do debate. O julgamento do REsp. 1.020.801/SP23 bem ilustra uma dessas hipóteses, pois o dano causado por um erro médico, o esquecimento de uma agulha no corpo da paciente em 1979, somente foi descoberto em 1995, sendo este tomando como referencial para início da fluência do prazo.

No julgamento do REsp. 1.711.581/PR24, a Terceira Turma estabeleceu que, para aplicar excepcionalmente a vertente subjetiva  da teoria da actio nata e considerar o início do prazo prescricional quando da ciência do lesado, é necessário que ele comprove que somente naquele momento foi possível vislumbrar a lesão ao seu direito.

A Comissão, cujo objetivo é atualizar aquela que é considerada a Constituição do homem comum, está empenhada em ouvir a sociedade civil e os especialistas, para, sem descuidar das bases lançadas pelo legislador em 2002, aprimorar a legislação tão cara e próxima da vida dos cidadãos, com responsabilidade e coerência. Em matéria de prescrição, ainda persistem dúvidas jurídicas que, certamente, serão alvo de propostas e debates em prol da segurança jurídica.

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