Lei de proteção de dados não foi pensada para as peculiaridades do Direito do Trabalho.
Inicialmente, é importantíssimo pontuar que o Direito do Trabalho constitui ramo autônomo no ordenamento pátrio, de modo que as disposições legais e normativas gerais possuem aplicabilidade condicionada à compatibilidade entre seus preceitos. A redação originária do art. 8º da CLT, consolidou entendimento no sentido de que o direito comum constitui fonte subsidiária do direito do trabalho “naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste”.
Deste modo, é reiteradamente pontuado pela doutrina que a LGPD não foi pensada para as peculiaridades do Direito do Trabalho, não havendo qualquer menção expressa ao ramo em seu teor, posicionamento oposto do GDPR Europeu, cujo artigo 88 versa inteiramente sobre proteção de dados em seara laboral. A omissão notada traz doses maiores de turbulência para áreas de interseção entre a LGPD e a CLT, mas é possível encontrar posicionamentos seguros a partir de uma análise sistemática legal, constitucional, de tratados internacionais e aplicando a técnica do direito comparado.
O The Employment Practices Code Data Protection emitido pela ICO, autoridade de proteção de dados relacionada ao governo do Reino Unido, ensina que a proteção de dados em seara laboral inclui a fase pré-contratual, delimitada pelo anúncio da vaga até a eliminação dos dados de candidatos não selecionados. Assim, mesmo que os dados sobre antecedentes para realização de background checks sejam coletados em rede aberta, seu tratamento deve se submeter aos princípios laborais, bem como aos elencados no artigo 6º da LGPD, e a finalidade do tratamento deve estar autorizada por alguma das hipóteses do artigo 7º da LG
É nesta toada de raciocínio que, em julgamento de incidente de recurso repetitivo — TST-IRR-243000-58.2013.5.13.
Dito isso, vê-se que a exigência destes dados dentro destes moldes se valeria, sem impedimentos, da base legal de “procedimentos preliminares relacionados a contrato” (art. 7º, V da LGPD). O trecho do precedente exemplifica atividades que ensejariam o requerimento destes antecedentes: “empregados domésticos, cuidadores de menores, idosos ou deficientes (…), motoristas rodoviários de carga, empregados que laboram no setor da agroindústria no manejo de ferramentas de trabalho perfurocortantes, bancários e afins, trabalhadores que atuam com substâncias tóxicas, entorpecentes e armas, (…) informações sigilosas”.
Como exemplo de tratamento embasado em obrigação legal, temos o exame toxicológico, previsto no Art. 168 §6º da CLT, exigível para o exercício da atividade de motorista profissional. Já como exemplo de obrigação regulatória, temos a exigência estipulada pela Norma Regulamentadora 35 (NR35) de exames de glicemia para trabalhadores que realizem suas atividades em altura. Nestes casos, além da base do “cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador” (art. 11, II, alínea “a” da LGPD) as empresas que realizam ambos os tipos de tratamento, poderiam fortalecer sua fundamentação legal sob a base da “proteção da vida ou da incolumidade física do titular (…)”, aplicável para o tratamento de dados sensíveis (art. 11, II, “e” da LGPD).
Toda a exigência acerca da necessidade de fundamentação do tratamento dos dados se aplica às informações cadastrais do colaborador junto ao departamento de RH. Sabe-se que ao contratar o funcionário será necessária a alimentação do sistema do E-Social com dados como nome completo, data de nascimento, raça/cor, escolaridade e endereço residencial. Dentre estes, vê-se que o elemento referente à raça e etnia constitui dado sensível, não devendo ser, via de regra, dado requerido nas etapas iniciais de captação de currículos, mas apenas quando da necessidade de preenchimento do sistema por ocasião da admissão, com base no art. 11º, II, “a” da LGPD.
Diz-se “via de regra”, porque se tratando de oportunidade destinada ao preenchimento de vaga afirmativa, tais dados podem ser requeridos na fase do recrutamento, isto é, ainda antes de efetivação do candidato aprovado. Uma dúvida muito comum acerca que qual base legal ampararia este tratamento pode ser respondida através de uma análise sistemática legal, constitucional e de tratados internacionais. Neste sentido, uma vez que tais vagas se destinam à reparação destinada a grupos historicamente subalternizados, vê-se que implantá-las, é atender ao princípio da igualdade material, constitucionalmente tutelado. Nota-se, também, que por constituírem elemento de discriminação positiva, em nada se conflitam com as finalidades discriminatórias vedadas pela LGPD, qualificadas como aquelas que possuam vieses “discriminatórios ilícitos ou abusivos” (Art. 6º, inciso IX).
Não se pode, ainda, deixar de mencionar o Decreto 9.571/2018, que estabelece as diretrizes nacionais sobre empresas e direitos humanos, incentivando a responsabilidade social por parte dos empregadores e do Estado, a fim de amortizar desigualdades históricas por meio de ações afirmativas, como as vagas em questão. Ampara, também, a questão a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância, da qual o Brasil é signatário. Notando que os instrumentos citados possuem força normativa, é possível vincular este tratamento de dados sensíveis à base elencada no art. 11, II, a) da LGPD: “nas hipóteses em que for indispensável para cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador;”.
Não é demais lembrar que devido ao conflito com a base principiológica do direito do trabalho, marcada pela subordinação jurídica e pela hipossuficiência do trabalhador, a utilização da base legal do consentimento, residual por si só, é ainda mais excepcional em relações laborais. Assim, um equívoco muito comum das empresas é requerer dados sensíveis com base no consentimento, o que, na maioria dos casos não se ampara segundo a doutrina. Deste modo, a corrente majoritária defende que a hipossuficiência do candidato, que precisa se alocar no mercado de trabalho, faz com que este forneça um consentimento viciado, e não “livre” e “inequívoco” como exige o art. 5º, XII, da LGPD.
Todo o exposto deve ser concebido à luz do princípio da não discriminação, previsto no art. 6º, IX, da LGPD, bem como das garantias constitucionais da não discriminação e acesso ao emprego, e das obrigações assumidas pelo Brasil internacionalmente. Em especial a Convenção 111 da OIT “Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação”, orientações em normativas emitidas pela entidade que inserem a Igualdade de oportunidades e não discriminação como elementos centrais da Agenda do Trabalho Decente.
Fonte: Jota