O aniversário de 20 anos da lei civil merece um olhar prospectivo, uma avaliação do que ainda não foi totalmente assimilado pelos juristas e pela sociedade brasileira, afinal, aplicar a lei, é também educar os cidadãos.
Não é preciso de anos de experiência para saber que a distância entre teoria e prática no âmbito de aplicação do Código Civil continua grande.
Estudos empíricos sobre a motivação das decisões judiciais dão conta de lembrar que conceitos abertos como boa-fé; função social do contrato e outros princípios chaves presentes na legislação ainda estão longe de serem bem aplicados.
Embora a socialização tenha sido uma conquista importante do Código Civil de 2002, trazendo, para dentro da lei, a consciência de que tutela da pessoa e da ética social se sobrepõe a uma super proteção do patrimônio, a utilização indiscriminada de tais conceitos traz prejuízo à segurança jurídica, causando, consequentemente, grandes impactos econômicos.
Traçando um olhar estatístico sobre a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), em conjunto com a análise de correspondência múltipla, os pesquisadores Alessandro Hirata e Beatriz Hernandez Silva concluem que o conceito de boa-fé objetiva sofre de uma “superutilização” que acaba por esvaziá-lo e vulgarizá-lo.
Ao invés de utilizar a boa-fé como ferramenta de resolução do caso concreto, sobretudo daqueles que Ronald Dworkin chama de hard cases (casos difíceis), a maioria esmagadora dos julgados faz um uso retórico do conceito apenas para demonstrar que sua linha de argumentação está compatível com a lógica social do Código Civil de 2002.
O mesmo ocorre com a função social e outros princípios correlatos, que reclamam aplicação direta, mas são deixados em segundo plano.
Uma forma simples e interessante de melhor aplicar tais conceitos seria (i) explicitar sua definição de forma clara; (ii) justificar sua aplicação no caso e (iii) aplicá-lo, indicando seus desdobramentos no caso concreto.
A sugestão não é nossa, mas de Bruno Ramos Pereira, ex-coordenador da Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP, que mede o nível de coerência das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) quando a Corte aplica o postulado da proporcionalidade.
Uma aplicação deste gênero, aumenta a confiança dos agentes econômicos (afinal, quanto mais informação e clareza, melhor!) tornando possível a construção de novas teorias que, de fato, colocam a sociabilidade em prática, como a tutela externa do crédito.
Não se trata, portanto, de preciosismo jurídico, mas da correta aplicação das ferramentas que o legislador de 2002 pensou, conferindo ao Direito Civil a característica de sistema aberto que fará ele mais aderente às novas tendências da modernidade.
De fato, o aniversariante do ano é mesmo um garoto de 20 anos: tem muito conhecimento já adquirido na bagagem; ainda mais conhecimento por adquirir e necessita de mais algumas décadas para crescer em experiência e se acostumar que a vida, assim como os casos concretos jurídicos, não é experiência linear, mas cheia de peculiaridades e imprevistos.
A forma como o Código Civil vem sendo aplicado, relatada nos estudos jurisprudenciais que temos até agora, confirma que já crescemos muito como sociedade, no entanto, é preciso ainda que os operadores do Direito se acostumem com essa nova forma de aplicar a lei, a fim de que os princípios sociais sejam efetivados e, ao mesmo tempo, não se deixe à segurança jurídica, tão importante para as relações econômicas, em segundo plano.
Somente essa maior atenção aos objetivos que o legislador queria alcançar quando editou o Código Civil de 2002 pode fazer dele mais do que uma cópia mais bonita e parcialmente reformada do Código Civil de 1916, atendendo às necessidades de desenvolvimento social e crescimento econômico, que são dinâmicas, e reclamam, portanto, uma legislação de mesma natureza.
Dada essa dinamicidade, há quem fale em descodificação, de modo que daqui 20 (vinte) anos pode ser que o Código Civil nem mais exista. Mas deixemos o aniversariante comemorar seu natalício, pois, mesmo sendo necessárias mudanças, há grandes avanços que merecem ser festejados.
Fonte: Diário de Justiça