Direito Cível

O caso Nevermind e o uso de imagens de crianças em redes sociais

O bebê – hoje adulto – do álbum moveu uma ação judicial contra os ex-integrantes da banda e a gravadora.

Há trinta anos, a banda norte-americana Nirvana estremeceu o mundo da música ao lançar o icônico álbum Nevermind. A primeira faixa, Smells Like Teen Spirits, alcançou rapidamente o posto de música mais tocada nas rádios e se tornou uma espécie de hino da juventude dos anos 90 em todo o mundo. Em uma crítica ao capitalismo, a capa do disco estampava um bebê que nadava nu, em uma piscina, rumo a um anzol com uma nota de um dólar. O bebê, todavia, cresceu e, contando hoje com trinta anos de idade, promoveu, na Califórnia, uma ação judicial contra os ex-integrantes da banda e a gravadora responsável pelo lançamento e distribuição do álbum.

Spencer Elden, autor da ação judicial, alega que, por conta da própria forma como foi retratado na capa do álbum, teria sido vítima de exploração de sua sexualidade infantil para fins comerciais. Alega, ainda, que sofreu danos psicológicos por conta da ampla difusão de sua nudez infantil ao longo da vida e que nunca foi remunerado pelo uso de sua imagem. Seus pais receberam, à época, duzentos dólares para autorizar o ensaio fotográfico.

O Nirvana era, então, uma banda de sucesso local e tal fato tem sido invocado para afirmar que não se poderia antever a extraordinária repercussão que a capa de Nevermind acabaria alcançando nos meses seguintes ao seu lançamento. Por outro lado, parece inegável que atingir este sucesso é o propósito inerente a qualquer disco lançado no mercado.

Um fato que pode acabar desempenhando um papel relevante no julgamento da demanda é o comportamento do próprio retratado. Em 2016, durante as comemorações do 25º aniversário de Nevermind, Spencer Elden posou voluntariamente, como já havia feito outras vezes, para um ensaio fotográfico reproduzindo a capa do álbum. E chegou a propor ao fotógrafo que fosse retratado nu. “Ele achou que seria esquisito, então pus meu calção de banho”, declarou, em seguida, ao The New York Post.

O fotógrafo que captou a imagem original há três décadas era amigo dos pais de Spencer Elden e mantém contato com o autor da demanda. Em entrevista ao jornal The Guardian em 2019, o fotógrafo declarou: “Eu costumava pensar: ‘Cara, quando aquele garoto tiver 16 anos ele vai me odiar’. Ele não me odeia, mas tem conflitos sobre a imagem. Ele sente que todo mundo fez dinheiro com a imagem, e ele, não.”

Mais que gerar discussão sobre uma fotografia captada trinta anos atrás, o caso Nevermind atrai a atenção para uma questão que é atualíssima: o consentimento dos pais é suficiente para a captação e o uso de imagens de crianças? Em um momento em que as redes sociais de maior sucesso têm se ancorado mais em imagens que em textos, não faltam postagens de imagens e vídeos de crianças, às vezes ainda bebês, ora em situações naturais, ora em contextos artificiosamente construídos para provocar humor ou contentamento.

Algumas destas imagens e vídeos alcançam, de fato, enorme sucesso e difusão mundial, sendo compartilhados por milhões de pessoas. Qual efeito essa “fama” involuntária pode ter sobre a criança quando ela atingir uma idade suficiente para compreender o modo ou o fim para o qual sua imagem foi utilizada é algo impossível de se antever.

Juridicamente, o exercício do direito fundamental à imagem e à privacidade exprime-se, frequentemente, pela opção por preservá-las. No caso das crianças e adolescentes, contudo, esses direitos ficam subordinados ao consentimento manifestado em ou outro sentido pelos pais. Os pais naturalmente devem exprimir esse consentimento no melhor interesse dos seus filhos, e não em seu próprio interesse, mas são os próprios pais que realizam esta avaliação. Em uma cultura que já conhece os riscos do excesso de exposição, deveria haver alguma restrição ou limite a esta livre avaliação?

No Brasil, tornou-se célebre o caso de um adolescente retratado em vídeo produzido para celebração de seu Bar Mitzvá. O próprio pai do menino fez a postagem do vídeo no YouTube para que pudesse ser visto por familiares em Israel. O vídeo, contudo, difundiu-se rapidamente, alcançando milhões de acessos e tornando o menino uma celebridade involuntária da internet. Uma ação judicial foi proposta em 2012 para que a menção ao nome e o vídeo contendo a imagem e a voz do adolescente fossem removidas da rede. Em 2016, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu ganho de causa ao rapaz.

Atualmente, não parece haver dúvida de que um ato informal e distraído como a postagem de uma imagem ou vídeo em uma rede social traz sempre o risco de uma propagação imensamente superior à esperada. Muitas pessoas buscam exatamente essa propagação, quase sempre como forma de autopromoção. Quando se trata, contudo, da postagem de uma imagem ou vídeo que envolva um terceiro, o ato, por mais lúdico que possa parecer, envolve direitos alheios que podem acabar violados por meio de uma divulgação não-consentida. Quando esses terceiros são crianças e adolescentes, esse risco torna-se ainda mais preocupante.

A construção segundo a qual os pais emitem consentimento em lugar de seus filhos menores advém do campo patrimonial. Como os filhos podem ser titulares de bens (recebidos, por exemplo, por herança de um avô ou uma avó), alguém precisa emitir as declarações de vontade necessárias à gestão do patrimônio. No caso das crianças, os pais substituem integralmente a sua vontade, manifestando o consentimento quando necessário à prática dos atos de cunho patrimonial. O mesmo modelo foi estendido ao exercício dos direitos da personalidade, entendendo-se que os pais é que manifestam, embora sempre no melhor interesse dos filhos, o consentimento necessário, por exemplo, à captação e difusão de sua imagem.

Ocorre que a semelhança entre a gestão do patrimônio e o exercício de direitos da personalidade do menor é meramente aparente. Se é certo que a criança pode não ter ainda o discernimento necessário a consentir ou não com determinado ato, ponderando suas consequências, parece evidente que os pais não devem se substituir à criança, fazendo opções em seu lugar, mas sim adotar atitudes capazes de preservar ao máximo a amplitude destas opções para o futuro.

No caso da captação e uso de imagens e da retratação de momentos de intimidade, a manifestação de vontade dos pais deveria tender, nesse contexto, a preservar os direitos fundamentais à imagem e à privacidade, evitando-se associar a criança publicamente a algo com que ele pode vir a não concordar no futuro. O tema é naturalmente polêmico, mas merece reflexão que não se limite ao plano dos costumes, mas alcance também o plano jurídico. Processos judiciais como aquele envolvendo o álbum Nevermind mostram que não podemos mais ser indiferentes ao problema.

Fonte: Jota

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *